COP30 no Pará tem disputa de narrativas sobre a Amazônia

Por Dhemerson Ley

A Conferência das Partes das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, a COP30, acontece em novembro de 2025 em Belém do Pará, e é vista como um marco histórico, pois será a primeira vez que o evento ocorrerá na Amazônia. A conferência pretende promover a conscientização sobre questões ambientais e a necessidade de práticas mais sustentáveis, além de amplificar vozes do Sul Global, por meio de mobilizações, atos políticos, acadêmicos e ambientais em todo o país.  

Contudo, ao observar de perto os discursos que se popularizam dentro e fora do Brasil sobre o evento, é possível perceber que há uma repetição de lógicas de silenciamento e a criação de narrativa permeada de estereótipos. A Amazônia que emerge nas notícias para promover a COP, nos relatórios institucionais e nos painéis de discussão é, em geral, aquela da floresta de grandes rios e das reservas de biodiversidade, uma Amazônia idealizada, porém distante da realidade. Dentro da floresta Amazônica, muitos povos lidam com uma diversidade de problemas  como territórios tensionados por conflitos fundiários, mineração, desmatamento acelerado e violência contra defensores ambientais. 

É nesse vácuo simbólico que o sudeste paraense desaparece. Uma região marcada por conflitos de terra, violência contra defensores ambientais e intensa pressão do agronegócio. Os conflitos agrários que cresceram exponencialmente no governo de Bolsonaro e continuaram batendo recordes nos primeiros anos de governo do presidente Lula. Para a CPT (Comissão Pastoral da Terra), as ideias implementadas pela extrema direita, que foram promovidas pelo ex-presidente, ainda estão presentes em várias esferas. Segundo dados da CPT, o principal causador de violência nas questões relacionadas a disputas por terra no ano de 2023 são os fazendeiros (31,2%), seguido por empresários (19,7%), governo federal (11,2%), grileiros (9%) e os governos estaduais (8,3%).

Apesar das discussões e conflitos que permeiam o sudeste do Pará, a região representa uma das frentes mais intensas da luta socioambiental no Brasil. Ainda assim, ela raramente aparece nas grandes mesas de negociação ou nos materiais institucionais que moldam o discurso climático internacional.  Para a ativista ambiental e dos direitos humanos, Claudelice Santos, há uma complexidade que vários meios de comunicação não conseguem refletir. A relação entre a humanidade e o meio ambiente deveria ser completamente diferente. Claudelice alerta para os impactos dessas atividades que, sob a justificativa do “avanço” e do “desenvolvimento”, promovem um desmatamento massivo em detrimento da floresta e, principalmente, dos povos originários, das comunidades tradicionais, dos agricultores e camponeses que habitam a região.

“Precisamos falar sobre o que o agronegócio e a mineração provocaram em termos de desmatamento, em nome de um falso desenvolvimento, que sacrifica a floresta e as pessoas que vivem nela,” diz Claudelice. A ativista revela que sua luta e seu engajamento se intensificaram após o assassinato do irmão, Zé Cláudio, e da cunhada Maria, ambos ambientalistas que defendiam essas comunidades.

Ela aponta que a apropriação violenta das terras está ligada às narrativas construídas e disseminadas na sociedade, que acabam por invisibilizar a resistência dos povos da Amazônia. A região tem sido palco de intensos conflitos entre comunidades que lutam pela preservação do seu território e grandes empresas mineradoras e do agronegócio, que buscam explorar a Amazônia sem assumir uma responsabilidade ambiental ou social.

A ativista define o sul e sudeste do Pará como uma verdadeira “região de sacrifício”, uma área de transição onde a floresta é retirada e os povos que lutam pela preservação são invisibilizados e fragilizados, ficando vulneráveis a diversos tipos de violência contra suas populações e lideranças. Ela destaca ainda o contraste entre essa dura realidade e as narrativas internacionais sobre a Amazônia, frequentemente divulgadas durante eventos como a COP30. “É comum que os debates globais não abordem a violência no campo e os ataques aos povos originários das regiões desmatadas,” observa.

Diretamente de Londres, Claudelice comenta que a percepção que se tem da Amazônia no exterior é diferente. “Aqui, muitas pessoas desconhecem a Amazônia verdadeira, veem apenas um grande bloco homogêneo, e não um mundo diverso, rico e complexo, cheio de lutas diárias contra o desmatamento, massacres e apagamento”, ressalta.

Para ela, a pauta da justiça climática global muitas vezes é ampla demais, abrindo espaço para que interesses nacionais e locais ignorem a necessidade de justiça social e ambiental. “Isso é muito problemático para o Brasil, especialmente para regiões como o sul e sudeste do Pará, onde convivemos com várias dessas injustiças e até um racismo ambiental. É fundamental que a sociedade e a mídia, tanto nacional quanto internacional, compreendam essas diferenças.”

Com a chegada do maior evento sobre mudanças climáticas no mundo, é possível notar um empenho do governo sobre mudanças e melhorias na cidade de Belém , onde será sediada a conferência. No entanto, enquanto os olhos do mundo se voltam para a cidade e para a Amazônia, vozes locais alertam para uma contradição: aqueles que mais sofrem os impactos da crise climática seguem, muitas vezes, fora das mesas de decisão.

É o que denuncia, Tabita Aynoã, em um vídeo que viralizou nas redes sociais. A produtora cultural que é moradora de uma das periferias de Belém, procura se envolver em mobilizações populares e em espaços comunitários, ela chama atenção para o que define como racismo ambiental, uma realidade escancarada na capital paraense, onde os efeitos da crise são sentidos de forma muito mais severa nas bordas da cidade.

“É uma grande contradição, pois a COP 30 chega em Belém como uma vitrine internacional da Amazônia, mas muitos de nós que vivemos e resistimos diariamente nas periferias dessa cidade, seguimos sendo silenciados. O que adianta sediar um evento global sobre clima se quem realmente está sofrendo com as crises climáticas não vai ser ouvido?”, questiona a produtora.

Para ela, o evento não pode se resumir a um palco para discursos distantes da realidade de quem convive diariamente com enchentes, falta de saneamento, ilhas de calor e poluição. “Somos nós que mais sentimos na pele os efeitos da crise climática. Nossas casas alagam primeiro, somos as mais afetadas pela falta de saneamento, pela poluição, pelo calor extremo e ainda assim somos as que menos têm acesso à tomada de decisão”, afirma Tabita.

Ela ressalta questões e marcadores sociais que colaboram com a desigualdade. “O racismo ambiental é quando a desigualdade racial se expressa nas formas como os impactos ambientais são distribuídos. Em Belém, isso é escancarado. As áreas mais poluídas, sem saneamento, onde falta água ou o lixo acumula, são sempre as mesmas: os bairros periféricos. Enquanto isso, as reformas bem estruturadas, com maiores investimentos, são sempre para o centro”.

Após seu vídeo chegar a quase 300 mil visualizações em menos de dois meses, a criadora de conteúdo para a internet relata que, “Foi realmente uma mistura de sentimentos. Muita gente começou a falar sobre racismo ambiental, inclusive em rodas de conversa nas batalhas de rima, nas universidades. Eu senti que a repercussão gerou impacto real”.

Apesar de ter sido procurada por movimentos sociais e organizações da sociedade civil que estão construindo eventos paralelos à COP, Tabita aponta que os espaços oficiais seguem sendo pouco acessíveis para quem vive nas periferias. “A minha participação tem sido muito mais pela força da mobilização popular do que por convite institucional”, pondera.

A produtora cultural defende que o caminho para uma verdadeira transformação passa, necessariamente, pela inclusão efetiva das populações historicamente marginalizadas. “A COP só vai gerar mudança se for com a gente, e não só em nosso nome. Justiça climática só existe com justiça social. E isso começa por reconhecer o protagonismo que historicamente foi silenciado”, conclui.

Em meio às discussões globais sobre clima, que ganharão ainda mais força nos próximos meses, lideranças indígenas do sudeste paraense alertam para um apagamento histórico da região nas pautas ambientais e climáticas na COP 30. Terra de intensa resistência e de desafios socioambientais, a etno região Marabá-tucuruí, que abrange povos de diferentes etnias, ainda luta para ser ouvida.

Regilianne Guajajara, ativista indígena, artesã, psicóloga e assessora da Secretaria de Articulação dos Povos Indígenas do estado, conhece de perto essa realidade. Filha de uma liderança histórica, ela carrega a luta no sangue e na trajetória. Para ela, a exclusão dos povos indígenas das discussões sobre justiça climática é mais um reflexo de uma estrutura que insiste em invisibilizar quem sempre esteve na linha de frente da defesa dos territórios.

“Infelizmente, pouco se fala sobre justiça climática no sul e sudeste do Pará, e isso é muito grave. Só na nossa etnoregião, Marabá-Tucuruí, temos dez povos indígenas, e mesmo assim seguimos de fora dos debates. Somos diretamente impactados pelas mudanças no clima: o atraso das chuvas, as secas, as queimadas que atingem nossos territórios. Isso afeta nosso modo de viver, de plantar, de colher, de manter nossas tradições”.

A ausência de participação efetiva dos povos indígenas nos espaços de decisão sobre clima, segundo Regilianne, escancara uma injustiça que não é só ambiental, mas histórica e social. “É fundamental que sejamos ouvidos. Ninguém melhor do que quem vive na floresta para dizer como ela deve ser cuidada. Seguimos resistindo, existindo e lutando para ocupar esses espaços”, afirma.

A própria trajetória de Regilianne é prova de resistência. Ela concluiu sua graduação em Psicologia em 2024, enfrentando o racismo, a falta de compreensão das universidades sobre a realidade indígena e o desafio constante de conciliar a vida acadêmica com as obrigações no território. “Ocupar a universidade foi desafiador. Não foi um espaço pensado para nós, povos indígenas. Sofri preconceitos, tive que conciliar a vida de mãe de pessoa com deficiência e de mulher indígena. Mas saí de lá com o diploma na mão, mostrando que somos capazes de entrar, permanecer e concluir, levando esse conhecimento de volta para nossa comunidade”, relata a ativista.

Às vésperas da COP 30, ela reforça que não há como discutir meio ambiente sem ouvir os povos indígenas. “Não se faz justiça climática sem justiça para os povos originários. A gente não tá lutando só por nós. Estamos reflorestando mentes, mostrando que manter a floresta em pé é manter a vida”, conclui.

Apesar da força da narrativa dominante que associa a Amazônia apenas ao desmatamento, ao avanço do agronegócio e às ameaças constantes à floresta, os territórios amazônicos seguem sendo palco de resistência e de construção de outros modelos de vida e de desenvolvimento. Para além das estatísticas alarmantes sobre devastação, há uma Amazônia viva, diversa e pulsante.

Bruno Malheiro, geógrafo, escritor e pesquisador, que atua diretamente com comunidades tradicionais da região, ressalta que a resistência está enraizada no cotidiano dos povos da floresta. “Quando a gente fala de formas de resistência, primeiro é entender que esses territórios nunca ficaram de braços cruzados. A resistência está no próprio modo de vida, tá na quebradeira de coco que se recusa a abrir mão do babaçu, tá no povo quilombola que mantém seus territórios, nas práticas dos povos indígenas, tá na roça, na pesca artesanal, e na agroecologia que se reinventa todo dia aqui na Amazônia. Isso é resistência’. afirma o professor.

Bruno também destaca o papel fundamental dos movimentos sociais na defesa dos territórios e na construção de alternativas sustentáveis. “A gente tem, sim, muitos movimentos vivos, pulsantes, movimentos como O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), como a Federação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar (Fetraf), como a próprio Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB). Tem as organizações indígenas, associações dos quilombolas, cooperativas de agroecologia. É uma diversidade muito grande de resistências que está acontecendo e que não aparece, porque essa narrativa do agro, da mineração, é potente, domina rádio, ela domina TV, ela domina o discurso político, e a gente fica parecendo que aqui só tem destruição, que aqui só tem desmatamento, que só tem pecuária, mas, não. Aqui tem floresta em pé, tem resistência, tem outros modos de viver e produzir”, enfatiza.

Para Malheiro, disputar a narrativa sobre a Amazônia é uma das frentes mais urgentes da luta. “Quem controla a narrativa, controla também como o território vai ser visto e como ele vai ser usado. Então, o papel do jornalismo e da universidade crítica é fundamental. Não dá mais para a universidade estar desconectada dos territórios, não dá mais para a imprensa ser só porta-voz do agronegócio “. Bruno Malheiro ainda finaliza comentando sobre as lutas para criar uma narrativa que represente melhor a Amazônia nas grandes mídias. “Se a gente não fizer pressão, se a gente não disputar espaço, quem vai estar lá não são os povos da floresta, não são os movimentos, não são as quebradeiras, não são os quilombolas, não são os indígenas, vai ser o agro, vai ser a mineração, vai ser o capitalismo verde. Esse que destrói de um lado e tenta vender uma imagem de sustentabilidade do outro”, conclui.

O sul e sudeste do Pará são regiões marcadas pela presença intensa da indústria do agronegócio e da mineração, atividades que acarretam sérios problemas ambientais e sociais para as comunidades locais. A exploração madeireira, a transformação de florestas em pastagens e áreas de plantio de soja, assim como a ação de grandes mineradoras, têm alterado profundamente o território amazônico. O alerta final é sobre a importância de garantir que os povos da floresta e os movimentos sociais ocupem os espaços de decisão e de debate global, como as conferências internacionais sobre clima.

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